Questão 1 Comentada - Prefeitura de São Paulo-2 - Auditor Municipal de Controle Interno AMCI Area de Especialização: Geral - FCC (2025)

Atenção: Para responder à questão, considere o texto a seguir.


Passo o dia fazendo uma reportagem, não procuro nem pelo telefone nenhum amigo - e quando anoitece e chego ao apartamento sou um homem só nesta cidade de São Paulo. Ligo para dois conhecidos; nenhum está em casa. Perdi há tempos meu caderno de endereços; não encontro a lista de telefone. Tomo um banho, mudo a roupa e saio sozinho, sem programa, pelas calçadas formigantes deste começo de noite paulistana.


A ideia de entrar em um restaurante e jantar sozinho me deixa frio. Entro num desses cafés movimentados da avenida São João, e como um desses pastéis feitos na hora, baratos e quentes com que em outros tempos enganei minha fome, nas noites frias, solitárias e sem dinheiro. Tomo também uma batida, depois peço um sanduiche e mais um pastel e um café; saio para a rua numa vaga noção de estar feliz, andando no meio dessa multidão encapotada que os cinemas de grandes luzes brilhantes vão engolindo em seus enormes ventres negros, onde esses homens e essas mulheres passam duas horas entretidos na mentira de outras vidas em outras terras. Vejo a multidão que sai de um desses cinemas, muitas dessas pessoas se comoveram com a fita, algumas choraram, há famílias enormes que chegam à calçada com um ar desorientado, meio sonâmbulas, e que de repente parecem aflitas de regressar à realidade da rua e de si mesmas, e temem se desagregar no seio da multidão apressada.


Desfilam por mim centenas, milhares de caras, e não conhecer ninguém me dá uma tristeza confortável, essa doçura melancólica da cidade estranha e grande. Entretanto aqui é São Paulo, onde tanto vivi. Entro em um bar ao acaso, mas também não vejo nenhum conhecido; e beber sozinho seria mais triste do que tudo. Agora não procuro mais ninguém; estou apenas vagando pelas ruas, integrado nesse fluir infindável de homens — um homem calado no meio deles, um desconhecido entre desconhecidos, apenas amparado por essa vaga solidariedade feita de alguma coisa de frágil e ao mesmo tempo de hostil, de prevenção e de identidade, que une os transeuntes da mesma rua. E reencontro assim, quase vinte anos depois, mais forte, mais populosa e imponente, a minha São Paulo da vez primeira, onde eu não conhecia ninguém e onde perambulei docemente uma noite inteira, aprendendo a rua com meus olhos e meus pés, gozando devagar o encanto da cidade que escolhera para viver exatamente porque ali não conhecia ninguém.


Mas ouço meu nome; é um amigo que me chama de dentro de um automóvel Subo ao seu carro, vamos encontrar outros amigos em um bar. Na calçada ficou o fantasma solitário, mas livre e lírico, do rapaz aventureiro de antigamente.


(Adaptado de: BRAGA, Rubem. “O Aventureiro”, Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 227/1952. Disponivel em: https:llrubl.casaruibarbosa.gov.br)



Na crônica “O Aventureiro”, de Rubem Braga,

  • A faz-se uma reflexão acerca do papel da solidão, responsável pela percepção e pelo cuidado de si em um contexto de anonimato e de dissolução das relações humanas.
  • B advinda da solidão das grandes metrópoles, pouco a pouco ganha corpo a hostilidade entre os transeuntes, contidos, no entanto, por uma mesma situação de desconhecimento e anonimato em meio a multidão.
  • C a procura de alguma companhia para dirimir a solidão, associada, em seguida, a uma tristeza confortável, cede lugar ao prazer proporcionado por um indistinto laço fraternal de anonimato com a multidão.
  • D a partir de referências concretas, como as ruas, os cafés e as salas de cinema, faz-se uma reflexão a propósito da solidão, ônus a ser pago por quem procura as grandes cidades em busca da liberdade proporcionada pelo anonimato.
  • E são descritos sucessivos modos de furtar-se à solidão das grandes cidades, que, embora por vezes prazerosa, é causa de uma vida carente de sentido, uma vez que tende a afastar as pessoas do convívio social.