Questão 4 Comentada - Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) - Atividade de Complexidade Intelectual - FUNCAB (2015)

Os segredos da narrativa

    Acumulo uma casa abarrotada, um palácio falsamente reluzente e uma miséria envergonhada. Tenho, entre os dentes, um repertório caótico frente ao qual capitulo entregue à desordem do meu instinto narrativo.
    A seleção que faço da vida é arbitrária. Faltam-me critérios para saber o que vale guardar para os anos vindouros. Como selecionar o que seja, se a própria existência é uma apologia ao banal?
    Aguardo, pois, um tempo futuro que me facilite alcançar o cerne da matéria onde a paixão soçobra e ilumina-se ao mesmo tempo.
    Sou um ser comprometido com o enigma da criação. Aarteé a minha razão de ser. Sua substância é inicialmente desconfortável, mas meu ofício não conhece expurgo. Desconfio que escrevo para alargar o sentido da vida. E que, ao criar à revelia certas metáforas, sirvo ao mistério que reina na minha terra, privo com a intimidade do meu corpo. E cedo entendi que, entre uma história e outra, o ideal é esgotar o que inicialmente se encontra sob o meu domínio, até dar caça de novo ao singular.
    Mal defino, contudo, este enigma a que sirvo, apesar do longo convívio com o fazer literário. Sempre que tentei esclarecer os postulados da arte narrativa, falhei em apreender sua vasta relação com o mundo e os seres. Sei, no entanto, que a escritura é a residência secreta do escritor na terra. E que, confrontado com o mito da criação, seu maior segredo, ele vive e morre em meio às palavras. Sob este mito aloja-se a sua estética, assim como a consciência da arte. Razão de o escritor tentar conceituar a natureza da linguagem, decifrar a escritura que deriva da imaginação e da ilusão. Pretender saber por que ilusão e imaginação, ambas de realidade evanescente, são sanguíneas e apaixonadas, ainda que pairem acima do concreto e do palpável. E apresentem, além do mais, marcas persuasivas, eloquentes, insidiosas, e estejam em todas as partes, atendendo aos ditames coletivos, tornando a arte crédula.
    Mas, graças à arte literária, que convive fundamentalmente com a esperança do inefável e do poético, aceitamos a ilusão do mundo, e dos sentimentos que nos habitam, como premissas para a existência da própria obra de arte. Para, deste modo, acolhermos a existência anímica de Aquiles, de Karamasoff, de Don Quijote, estes seres ilusórios que nos surgem revestidos de carne.

(PINON, Nélida. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 23-24, fragmento.)


“E cedo entendi que, entre uma história e outra, o ideal é esgotar o que inicialmente se encontra sob o meu domínio, até dar caça de novo ao singular."

A redação que corresponde a uma paráfrase do período transcrito é:
  • A Para não se confundir no processo criativo, o escritor deve ter o cuidado de concluir uma narrativa mesmo que já tenha matéria para iniciar outra.
  • B Logo cheguei ao entendimento de que, entre uma narrativa e outra, devo completar o que já conheço, para depois procurar elementos ainda não explorados.
  • C E logo entendi que, ao passar de uma história para a outra, é importante que, antes de completar totalmente a primeira, eu busque elementos novos para servir de enredo à próxima.
  • D Tendo completamente uma narrativa, o escritor deve buscar com urgência matéria para novo livro para não ter sua imaginação criativa inibida.
  • E Todo escritor tem em conta que para atender ao seu constante processo criativo é ideal que esteja em busca permanente de matéria para um novo livro, mesmo ainda no processo de criação do que está em curso.