Questão 1 Comentada - Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE-PI) - Bibliotecário - FCC (2014)

Fundas canções

Existirmos, a que será que se destina?" - pergunta um verso de Caetano Veloso em sua bela canção “Cajuína", nascida numa visita a amigo em Teresina. Que faz numa canção popular essa pergunta fundamental sobre o propósito mesmo da vida humana? - perguntarão aqueles que preferem separar bem as coisas, julgando que somente os gêneros “sérios" podem querer dar conta das questões “sérias". O preconceito está em não admitir que haja inteligência - e das fulgurantes, como a de Caetano Veloso - entre artistas populares. O fato é que a pergunta dessa canção, tão sintética e pungente, incide sobre o primeiro dos nossos enigmas: o da finalidade da nossa existência.

Não seria difícil encontrarmos em nosso cancioneiro exemplos outros de pontos de reflexão essencial sobre nossa condição no mundo. Em “A vida é um moinho", de Cartola, ou em “Esses moços", de Lupicínio Rodrigues, ou ainda em “Juízo final", de Nelson Cavaquinho, há agudos lampejos reflexivos, nascidos de experiências curtidas e assimiladas. Não se trata de “sabedoria popular": é sabedoria mesmo, sem adjetivo, filtrada por espíritos sensíveis que encontraram na canção os meios para decantar a maturidade de suas emoções. Até mesmo numa marchinha de carnaval, como “A jardineira", do Braguinha, perguntamos: “Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?" - para saber que a tristeza dela vem da morte de uma camélia. Essa pequena tragédia, cantada enquanto se dança, mistura-se à alegria de todos e funde no canto da vida o advento natural da morte: “Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu..."

Mesmo em nosso folclore, compositores anônimos alcançaram um tom elevado na dicção aparentemente ingênua de uma cantiga de roda. Enquanto se brinca, canta-se: “Menina, minha menina / Faz favor de entrar na roda / Cante um verso bem bonito / Diga adeus e vá-se embora". Não será essa uma expressão justa do sentido mesmo de nossa vida: entrar na roda, dizer a que veio e ir-se embora? É o que cantam as alegres crianças de mãos dadas, muito antes de se preocuparem com a metafísica ou o destino da humanidade.


(BARROSO, Silvino, inédito)



O sentido essencial desse texto, considerado no conjunto e na perspectiva adotada pelo autor, está adequadamente expresso na seguinte formulação:

  • A é da natureza mesma da arte popular expressar, em linguagem rebuscada e hermética, os temas que perturbam os filósofos e costumam ecoar nos seus mais altos tratados.
  • B a canção popular encontra a justificativa mesma da sua existência no fato de responder em linguagem altissonante as questões que costumam afligir nossas vidas.
  • C muitas vezes ocorre que se encontre numa canção popular a expressão de uma grande sabedoria, nascida e decantada a partir de uma funda experiência.
  • D os artistas populares habilitados a tratar dos mais profundos temas em suas canções não deixam de acusar a formação acadêmica que lhes dá respaldo.
  • E a sabedoria popular dispensa esse adjetivo toda vez que surpreendemos, na letra de uma canção, uma versão facilitada dos clássicos e folclóricos ditados.