Questão 4 Comentada - Câmara de Araraquara-2 - Agente Administrativo - Instituto Consulplan (2025)

Texto para responder à questão.

      Eu deveria cantar.
    Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr até a igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal “Para as Almas do Purgatório”. Agradecer, pedir luz, como nos tempos em que tinha fé.
      Bons tempos aqueles, pensei. Acendi um cigarro. E não tomei nenhuma dessas atitudes, dramáticas como se em algum canto houvesse sempre uma câmera cinematográfica à minha espreita. Ou Deus. Sem juiz nem plateia, sem close nem zoom, fiquei ali parado no começo da tarde escaldante de fevereiro, olhando o telefone que acabara de desligar. Nem sequer fiz o sinal da cruz ou levantei os olhos para o céu. O mínimo, suponho, que um sujeito tem a obrigação de fazer nesses casos, mesmo sem nenhuma fé, como se reagisse a uma espécie de reflexo condicionado místico.
     Acontecera um milagre. Um milagre à toa, mas básico para quem, como eu, não tinha pais ricos, dinheiro aplicado, imóveis, nem herança e apenas tentava viver sozinho numa cidade infernal como aquela que trepidava lá fora, além da janela ainda fechada do apartamento. Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito a visão ou erguer-se da cadeira de rodas com o semblante beatificado e a leveza de quem pisa sobre as águas. Embora a miopia ficasse cada vez mais aguda e os joelhos tremessem com frequência, não sabia se fome crônica ou pura tristeza, meus olhos e pernas ainda funcionavam razoavelmente. Outros órgãos, verdade, bem menos.
     Toquei o pescoço. E o cérebro, por exemplo.
    Já chega, disse para mim mesmo, parado nu no meio da penumbra gosmenta do meio-dia. Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se – um emprego.


(ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Planeta De Agostini, 2003, p. 11-12.)


Caio Fernando Abreu foi um transgressor, autor de uma obra autoconfessional. Fascinado pelo tema da individualidade, por vezes sombrio, voltou a ter enorme popularidade nestes tempos de mídias sociais. Em relação ao texto apresentado, de Caio Fernando Abreu, é correto afirmar que:

  • A Utiliza a pessoalidade gramatical, já que tem a intenção de especificar um posicionamento.
  • B Assinala a necessidade de “arranjar um emprego” fora dos contextos sociais da época atual.
  • C Apresenta um predomínio de sequências textuais injuntivas e expositivas, características dos textos narrativos.
  • D Emprega a expressão “Para as Almas do Purgatório” entre aspas para destacar uma inadequação ideológica do termo.
  • E Aborda, através da exposição de fatos, isto é, de uma história, um tema bastante corriqueiro e contemporâneo da sociedade atual.