O motorista do 8-100
Fui convidado por um colega da redação de jornal, outro dia, a ver um belo espetáculo. Que eu estivesse pela manhã bem cedo junto ao último edifício da Avenida Rio Branco para assistir à coleta de lixo. Fui. Vi chegar o caminhão 8-100 da Limpeza Urbana e saltarem os ajudantes que se puseram a carregar e despejar as latas de lixo. Enquanto isso, que fazia o motorista? O mesmo de toda manhã. Pegava um espanador e um pedaço de flanela, e fazia o seu carro ficar rebrilhando de beleza.
É costume dizer que a esperança é a última que morre. Nisso está uma das crueldades da vida: a esperança vive à custa de mutilações. Vai minguando e secando devagar, se despedindo dos pedaços de si mesma, se apequenando e empobrecendo, e no fim é tão mesquinha e despojada que se reduz ao mais elementar instinto de sobrevivência e ao conformismo.
Esse motorista, que limpa seu caminhão, não é um conformado, é o herói silencioso que lança um protesto superior. A vida o obriga a catar lixo e imundície; ele aceita a sua missão, mas a supera com esse protesto de beleza e dignidade. Muitos recebem com a mão suja os bens mais excitantes e tentadores da vida; e as flores que vão colhendo no jardim de uma existência fácil logo têm, presa em seus dedos frios, uma corrupção que as desmerece e avilta. O motorista do caminhão 8-100 parece dizer aos homens da cidade: “O lixo é vosso: meus são estes metais que brilham, meus são estes vidros que esplendem, minha é esta consciência limpa”.
(Adaptado de: BRAGA, Rubem. O homem rouco. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963, p. 145-146)
Os três parágrafos em que se estrutura o texto podem ser identificados, nesta ordem, pelos seguintes procedimentos:
- A descrição de um incidente; reflexão sobre esse incidente particular; conclusão genérica, de sentido moral.
- B narração de uma visita; reconhecimento do caráter prosaico de uma cena; divagação sobre o valor social do trabalho.
- C introdução a uma análise política; exemplificação de um sentimento edificante; reconhecimento moral do bom conformismo.
- D reconhecimento de uma cena insólita; reflexão sobre a pauperização de um sentimento; valorização conclusiva da cena inicial.
- E testemunho de uma ação extravagante; cogitação sobre o sentido dessa ação; enaltecimento da humildade de um simples trabalhador.