Questão 1 Comentada - Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) - Bibliotecário (2022)

Se o projeto deste livro [O tempo e o cão: a atualidade das depressões] se deve ao início de algumas análises com pessoas depressivas, o processo mental de sua escrita inaugurou-se no dia em que atropelei um cachorro. Foi um acidente anunciado, com poucos segundos de antecipação, e mesmo assim inevitável, por conta da velocidade normal dos acontecimentos na atualidade. Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo, em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. Naquele dia, acossada pelos caminhões que vinham atrás de mim em uma autoestrada, ainda pude ver pelo retrovisor que o animal ferido conseguiu atravessar o resto da rodovia e embrenharse no mato. Em questão de segundos, não escutei mais seu uivo de dor nem pude conferir o dano que lhe fiz. O cão deixou de existir em meu campo perceptivo, assim como poderia ter sido definitivamente forcluído do registro da minha experiência; seu esquecimento se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para, em seguida, com igual rapidez, esquecê-las.

[...]

Poucos minutos depois do acidente, ainda na estrada, comecei a esboçar em pensamento um texto a respeito da brutalidade da relação dos sujeitos contemporâneos com o tempo. Do mau encontro que poderia ter acabado com a vida daquele cão, restou uma ligeira mancha escura no meu para-choque. Foi tão rápido o choque que não teria se transformado em acontecimento se eu não sentisse a necessidade de recorrer à cena diversas vezes, em pensamento, ao longo dos vinte quilômetros que ainda me faltavam percorrer até o meu destino.


KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009. p. 16-17. (fragmento).


Glossário:
Forcluído: excluído.


A experiência vivida por Maria Rita Kehl permitiu-lhe desenvolver a tese de que o

  • A relacionamento entre os sujeitos contemporâneos é brutal. 
  • B encontro com a morte revela a necessidade de valorizar a vida.
  • C homem contemporâneo é insensível aos sentimentos do animal.
  • D crescente número de mortes no trânsito se deve à presença de caminhões.
  • E ritmo veloz da vida moderna impede que o homem reflita sobre suas vivências.