Razão: a tela plana interfere no desenvolvimento da visão que acontece ao longo dos dois primeiros anos de vida. Um outro motivo: a limitação que o uso dos equipamentos tecnológicos acaba por acarretar no desenvolvimento da criança, pelo fato de que, frente à televisão ou computador, ela não realiza outras atividades básicas que garantam a formação de memórias a partir das experiências com os outros sentidos e dos movimentos do corpo no espaço. Além, naturalmente, de experiência com os objetos e pessoas do mundo real.
Há muito que pesquisar sobre o uso da tecnologia, porém é sempre bom lembrar que todo e qualquer equipamento tecnológico faz parte da cultura humana e que o cérebro se desenvolve em função da cultura. O desenvolvimento do cérebro é de natureza biológica e cultural. O cérebro forma-se, desenvolve-se e amadurece com base na genética da espécie e pelas experiências de vida de cada um.
O cérebro tem enorme plasticidade, ou seja, é capaz de se organizar e reorganizar continuamente durante toda a vida do ser humano. A plasticidade é maior na primeira infância, mas se mantém durante a adolescência e toda a vida adulta. Esta é uma característica importante do desenvolvimento: a possibilidade de modificações e mudanças a qualquer idade.
Até na ocorrência de acidentes cerebrais, lesões ou outras condições biológicas adversas, o cérebro é capaz de se reorganizar funcionalmente. Oliver Sacks escreveu extensivamente sobre casos clínicos de patologias e acidentes cerebrais e a capacidade de reorganização do cérebro apresentada por muitos pacientes e inclusive sobre a sua experiência pessoal, como a perda de visão de um olho (O olhar da mente, de Oliver Sacks).
Em uma pessoa cega, por exemplo, o cérebro se modifica desenvolvendo mais os sentidos do tato e da audição, dois sentidos em que o cego se apoia para percepção e ações que seriam próprias da área do córtex visual. Nosso cérebro é, portanto, dinâmico. Conforme nos diz Kandel, prêmio Nobel de Medicina em 2000 (pela descoberta sobre a formação e funcionamento de memórias de curta e de longa duração), “O cérebro não é estático, ele é plástico!”. Ele responde às mudanças nos contextos em que a pessoa vive ou frequenta.
Ao longo da história cultural do ser humano, as invenções, aquisições e produções em cada período histórico suscitam respostas ou diferenciações no cérebro e provocam mudanças significativas em seu funcionamento.
Vejamos o exemplo da escrita. A escrita é uma invenção, é um produto cultural criado pelo ser humano. Não há no cérebro uma área destinada a aprender a ler ou a escrever, como acontece com a fala.
Para ler e/ou escrever, o cérebro passa por um processo de mudança formando redes neuronais específicas para compreender os significados ao se ler um texto e para criar significados quando se escreve um texto. Isso acontece precisamente porque, como observamos, não há uma área específica no cérebro para a aprendizagem da leitura e da escrita.
Dehaene, neurocientista francês, um dos maiores especialistas em cérebro e escrita, em seu livro Neurônios da Leitura, esclarece que “um dos efeitos maiores da escolarização é o aumento da capacidade da memória.” Segundo ele, “há ainda modificações anatômicas como é o caso do corpo caloso que se espessa na pessoa que aprende a ler.” (Dehaene, Neurônios da Leitura, 2012, pg. 227).
A invenção da escrita, a invenção da imprensa e agora a invenção de novos instrumentos tecnológicos e novos usos da tecnologia na vida cotidiana causam impacto na história evolutiva da espécie. E, como mostram as pesquisas da neurociência acumuladas nas últimas décadas, há certamente um impacto no desenvolvimento e funcionamento do cérebro, porém, não a ponto de que, após cinco mil anos de existência da escrita, o cérebro dispense ensino, exercício e sistematização para se tornar um cérebro capaz de ler e de escrever.
O cérebro se modifica anatomicamente, mas dessas modificações não resultam que ler e escrever se desenvolvam naturalmente como a fala. A leitura e a escrita precisam ser ensinadas e é necessário muito estudo para que uma pessoa, em qualquer idade, se aproprie da estrutura básica do sistema linguístico de qualquer língua escrita, alfabética ou ideográfica.
Para ler, diz ele, há que se formar uma nova estrutura no cérebro, que ele chamou de “ boîte aux lettres” (tradução livre, caixa de letras). Essa estrutura possibilita aprender a lidar com o sistema simbólico da escrita, em qualquer língua. Ela é resultante da plasticidade do cérebro e revela que uma invenção cultural impacta e promove modificações no cérebro. É o que acontece, também, com instrumentos tecnológicos e com o uso da tecnologia.
O texto, dominantemente, propõe-se a
- A criticar um ponto de vista científico.
- B descrever um estudo científico.
- C explicar uma constatação científica.
- D informar sobre uma descoberta científica.