Incidente de Deslocamento de Competência - Federalização dos Crimes Graves contra os Direitos Humanos
O incidente de deslocamento de competência trata da federalização de questões de direitos humanos. A EC nº 45/2004 incluiu o inciso V-A e o § 5º no art. 109, que passou a prever, como competência da Justiça Federal, as graves violações de direitos humanos.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.)
Consoante o referido § 5º do art. 109 da CF/1988 (com redação dada pela EC nº 45/2004), nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.)
Vale notar que o deslocamento só pode ser feito se estiver em discussão o descumprimento de obrigações internacionais, sendo que a responsabilidade internacional em virtude do descumprimento de obrigações de tratados internacionais é sempre do Estado Federal (do Brasil), pouco importando se a violação do direito decorreu de atuação de um estado ou de município brasileiro.
Esse procedimento é chamado de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Na análise desse dispositivo constitucional, não se pode esquecer duas coisas: a legitimidade é do Procurador-Geral da República e a competência é do STJ. Numa prova objetiva, pode ser cobrada uma assertiva colocando como legitimado o Advogado-geral da União ou a competência como sendo do Supremo Tribunal Federal (STF) ou Tribunal Regional Federal (TRF), para o candidato ler rápido, não perceber e se confundir.
Em relação aos incidentes ajuizados, foram fixados alguns entendimentos importantes:
IDC nº 1 (Dorothy Stang) – No IDC nº 1, o STJ destacou que o art. 109, V-A e § 5º, da CF/1988 são normas de eficácia plena, vale dizer, não há necessidade de uma lei para estabelecer e detalhar o procedimento do incidente de deslocamento de competência. Assim, o STJ já se sentiu hábil a decidir o IDC, independentemente de interposição do legislador, pois são normas de eficácia plena. Ainda no mesmo incidente, afirmou também que os requisitos do IDC são:
a) grave violação dos direitos humanos, pois não enseja uma violação comum dos direitos humanos, devendo ser uma violação grave;
b) previstos em tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte;
c) deve ser demonstrada a incapacidade da unidade federativa para processar e julgar essa demanda, ou seja, não basta ter uma grave violação e ser direito previsto em tratado de que o Brasil seja parte, mas é necessário também que esteja demonstrada certa inércia ou incapacidade institucional das autoridades locais, do Poder Judiciário local, da polícia local, para dar andamento ao processo, devendo ser necessário ficar demonstrado no caso concreto.
O STJ sempre destacou a excepcionalidade do incidente de deslocamento como sendo uma relativização do princípio do juiz natural. Diante disso, é necessário que esse deslocamento seja excepcional, e não a regra. Destacou ainda que a análise deve ser sempre feita com proporcionalidade e razoabilidade. O IDC nº 1/STJ fixou a possibilidade de intervenção de amicus curiae no deslocamento de competência. Por fim, frise-se que o IDC foi admitido, mas não houve o acolhimento do pedido de deslocamento.
O IDC n. 1, cujo pano de fundo foi o assassinato da missionária Dorothy Stang, suscitado em 2005, revelou-se como um paradigma, tendo sido estabelecidas inúmeras premissas neste julgado.
Assim, por didático, colaciona-se o julgado:
CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DOLOSO QUALIFICADO. (VÍTIMA IRMÃ DOROTHY STANG). CRIME PRATICADO COM GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA - IDC. INÉPCIA DA PEÇA INAUGURAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. PRELIMINARES REJEITADAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E À AUTONOMIA DA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RISCO DE DESCUMPRIMENTO DE TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELO BRASIL SOBRE A MATÉRIA NÃO CONFIGURADO NA HIPÓTESE. INDEFERIMENTO DO PEDIDO.
1. Todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992, razão por que não há falar em inépcia da peça inaugural.
2. Dada a amplitude e a magnitude da expressão - direitos humanos -, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir o rol dos crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstâncias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há falar em norma de eficácia limitada. Ademais, não é próprio de texto constitucional tais definições.
3. Aparente incompatibilidade do IDC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor deve ser resolvida aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
4. Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos.
5. O deslocamento de competência - em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido - deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.
6. Pedido indeferido, sem prejuízo do disposto no art. 1º, inc. III, da Lei nº 10.446, de 8/5/2002.
(IDC 1/PA, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08.06.2005, DJ 10.10.2005, p. 217)
Até janeiro de 2015, o IDC havia sido suscitado apenas cinco vezes, tendo havido o deslocamento apenas em dois casos, o do vereador Manoel e do promotor Thiago:
a) a execução do ex-vereador e advogado Manoel Mattos (2010); e
b) o assassinato do promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares (2014).
Porém, até 2019, outros cinco IDCs foram suscitados no STJ. Um deles (IDC nº 11) foi rejeitado por falta de legitimidade, justamente por ter sido suscitado por pessoa física e não pela PGR.
Para além desses, houve ainda um Recurso Extraordinário (RE), como destaque, o IDC nº 14, que versou sobre a Polícia Militar do Espírito Santo, envolvidos em movimentos de greve em 2017, que foi indeferido pela 3ª Seção, nos termos do voto da Ministra relatora Maria Thereza. Porquanto, o IDC possui natureza processual e é informado pelos princípios da excepcionalidade e subsidiariedade:
Quanto aos seus requisitos, exige-se cumulativamente, nos termos como delineados pelo STJ: (i) grave violação de direitos humanos previsto em tratado internacional do qual signatário o Brasil; (ii) risco de responsabilização internacional do Estado brasileiro em razão da incapacidade das instâncias locais para realizar a investigação ou julgamento das graves violações de direitos humanos previstos em tratados (IDC’s n. 1, 2, 3 e 5, Terceira Seção) (STJ, IDC nº 14/DF, 3ª Turma, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, por maioria, julgado em 08.08.2018, DJe 22.08.2018).
Note que no IDC nº 5, cujo pedido foi acolhido para o fim de deslocar a competência, no caso do assassinato do promotor de justiça Thiago Faria, o STJ mencionou o IDC nº 1 para o fim de estabelecer os parâmetros básicos em relação ao acolhimento do pedido:
INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO INSERIDO EM CONTEXTO DE GRUPOS DE EXTERMÍNIO. GRAVE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS. CONFIGURAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DECORRENTES DE TRATADO INTERNACIONAL. ESTADO-MEMBRO. AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES DE APURAR VIOLAÇÕES E RESPONSABILIZAR O(S) CULPADO(S). EXCEPCIONALIDADE DEMONSTRADA. DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA QUE SE MOSTRA DEVIDO.
1. A Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, relativa à reforma do Poder Judiciário, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de deslocamento da competência originária para a investigação, o processamento e o julgamento dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.
2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal explicitou que os requisitos do incidente de deslocamento de competência são três: a) grave violação de direitos humanos; b) necessidade de assegurar o cumprimento, pelo Brasil, de obrigações decorrentes de tratados internacionais; c) incapacidade - oriunda de inércia, omissão, ineficácia, negligência, falta de vontade política, de condições pessoais e/ou materiais etc. - de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, levar a cabo, em toda a sua extensão, a persecução penal (IDC n. 1/PA, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 8.6.2005, DJ 10.10.2005).
3. A violação de direitos humanos que enseja o deslocamento de competência, além de grave, deve ser relacionada a obrigações decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.
4. Para o deslocamento da competência, deve haver demonstração inequívoca de que, no caso concreto, existe ameaça efetiva e real ao cumprimento de obrigações assumidas por meio de tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, resultante de inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais de o Estado-membro, por suas instituições e autoridades, proceder à devida persecução penal.
5. A confiabilidade das instituições públicas envolvidas na persecução penal - Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário -, constitucional e legalmente investidas de competência originária para atuar em casos como o presente, deve, como regra, prevalecer, ser apoiada e prestigiada.
6. O incidente de deslocamento de competência não pode ter o caráter de prima ratio, de primeira providência a ser tomada em relação a um fato (por mais grave que seja). Deve ser utilizado em situações excepcionalíssimas, em que efetivamente demonstrada a sua necessidade e a sua imprescindibilidade, ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e/ou materiais das instituições - ou de uma ou outra delas - responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa, até para não se esvaziar a competência da Justiça Estadual e inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal.
7. A ideia de excepcionalidade do incidente não pode, contudo, ser de grandeza tal a ponto de criar requisitos por demais estritos que acabem por inviabilizar a própria utilização do instituto de deslocamento.
8. O caso dos autos aponta fatores relacionados à região onde ocorreu a morte do Promotor de Justiça estadual Thiago Faria Soares, com indicativos de que o assassinato provavelmente resultou da ação de grupos de extermínio que atuam no interior do Estado de Pernambuco (como tantos outros que ocorreram na região conhecida como "Triângulo da Pistolagem", situada no agreste pernambucano), bem como ao certo e notório conflito institucional que se instalou, inarredavelmente, entre os órgãos envolvidos com a investigação e a persecução penal dos ainda não identificados autores do crime noticiado.
9. A falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que arrisca comprometer o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio.
10. O pedido de deslocamento de competência encontra-se fundamentado em afronta a tratado internacional de proteção a direitos humanos. O direito à vida, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), é a pedra basilar para o exercício dos demais direitos humanos. O julgamento justo, imparcial e em prazo razoável é, por seu turno, garantia fundamental do ser humano, previsto, entre outros, na referida Convenção, e dele é titular não somente o acusado em processo penal, mas também as vítimas do crime (e a sociedade em geral) objeto da persecução penal, dada a redação ampliativa dada ao inciso LXXVIII do artigo 5º da CF: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem, reiteradamente, asseverado que a obrigação estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos deve ser empreendida pelos Estados de maneira séria e efetiva, dentro de um prazo razoável.
11. No caso vertente, encontram-se devidamente preenchidos todos os requisitos constitucionais que autorizam e justificam o pretendido deslocamento de competência, porquanto evidenciada a incontornável dificuldade do Estado de Pernambuco de reprimir e apurar crime praticado com grave violação de direitos humanos, em descumprimento a obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.
12. Incidente de deslocamento de competência julgado procedente, para que seja determinada a imediata transferência do Inquérito Policial n. 07.019.0160.00158/2013-1.1 para a Polícia Federal, sob o acompanhamento e controle do Ministério Público Federal, e sob a jurisdição, no que depender de sua intervenção, da Justiça Federal, Seção Judiciária de Pernambuco. Ainda, determinação para que a tramitação do feito corra sob o regime de segredo de justiça, observada a Súmula Vinculante n. 14, do Supremo Tribunal Federal.
(IDC 5/PE, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 3ª Seção, julgado em 13.08.2014, DJe 01.09.2014).
Recentemente, tivemos o julgamento do IDC nº 24/DF, relacionado ao assassinato da vereadora Marielle Francisco da Silva e Anderson Pedro Matias Gomes, que foi indeferido.
Vejamos:
INCIDENTE DE DESCOLAMENTO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIOS DE MARIELLE FRANCO E ANDERSON GOMES. TENTATIVA DE HOMICÍDIO DE FERNANDA GONÇALVES CHAVES. INQUÉRITO POLICIAL CIVIL EM ANDAMENTO, COM SUPERVISÃO DO GAECO DO MPRJ. PRETENDIDO DESCOLAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES DOS MANDANTES PARA A POLÍCIA FEDERAL. INEXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS PARA A EXCEPCIONAL MEDIDA. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE.
1. À mingua de legislação ordinária que disciplinasse a norma do § 5.º do art. 109 da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, o Superior Tribunal de Justiça, dando-lhe aplicação imediata, tratou de delinear seus contornos.
2. Desde os primeiros julgamentos dos Incidentes de Deslocamento de Competência, ficaram estabelecidas as diretrizes para o acolhimento do pedido, quais sejam, excepcionalidade, necessidade, imprescindibilidade, razoabilidade e proporcionalidade da medida, observada a exigência de se reunir os seguintes pressupostos para o seu deferimento: (1) a existência de grave violação a direitos humanos; (2) o risco de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e (3) a incapacidade das instâncias e autoridades locais de oferecer respostas efetivas.
3. As circunstâncias que pairam sobre o caso, ainda inconcluso, parecem apontar para uma execução planejada, com indicativos de participação de organização criminosa, o que, evidentemente, configura gravíssimo atentado não só aos direitos humanos, mas ao próprio Estado Democrático de Direito. Afinal, estar-se-ia diante de uma ação delituosa contra parlamentar atuante perpetrada por criminosos que, em tese, integrariam grupo armado que exerce um poder paralelo ao do Estado constituído.
4. A alegação do MPF de "contaminação" do aparato policial do Estado do Rio de Janeiro pelo crime organizado é feita de forma genérica, sem a indicação de nenhum elemento ou indício de prova concreta do suposto comprometimento dos investigadores do caso.
5. Quanto aos agentes públicos que supostamente atuaram para atrapalhar as investigações, todos foram afastados e há investigações e ações penais em andamento para apuração dos fatos e punição de eventuais culpados. Assim, ao contrário do alegado na petição inicial do Incidente, para cada suposto desvio de conduta de membros da corporação houve uma reação firme no sentido de se reestabelecer a ordem.
6. A opinião de distinto Desembargador do TJRJ acerca da capacidade de a Polícia Civil desvendar os crimes em questão, dada em entrevista a um jornalista, não se transmuda em fundamento apto a justificar o pedido de intervenção, notadamente em razão das aludidas providências legais adotadas, que desdizem a insinuação de incapacidade.
7. Convém esclarecer que, até o momento, não se tem notícia de abertura de nenhum procedimento formal perante as Cortes Internacionais para apurar eventual responsabilidade do Brasil decorrente de suposto descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais.
8. É certo que o Brasil se comprometeu, ao aderir a acordos multilaterais, a garantir proteção a direitos internacionalmente consagrados, em especial, os direitos humanos. Contudo, a responsabilização por eventual descumprimento, necessariamente, deve decorrer de inércia, descaso, condescendência, ou seja, de uma inação ou de uma ação descompromissada com o bem jurídico tutelado. Hipótese inexiste no caso.
9. A condução das investigações pelas autoridades locais, até o momento, repele a alegação de inércia, ressaltando que já foram ouvidas mais de 230 pessoas, dentre elas, testemunhas, informantes e indiciados, e realizadas diversas medidas cautelares, como interceptação telefônica, quebra de sigilo de dados telemáticos, interceptação ambiental, buscas e apreensões no curso da investigação.
10. No transcorrer das investigações realizadas pela Polícia Civil do Estado em conjunto com o Ministério Público, houve encontro fortuito de crimes graves, envolvendo grupos armados e perigosos, justamente aqueles que são apontados como resistentes ao bom andamento do trabalho investigatório, o que denota efetiva reação do Estado contra o crime organizado.
11. Pelo que se pode inferir dos autos, não há sombra de descaso, desinteresse, desídia ou falta de condições pessoais ou materiais das instituições estaduais encarregadas por investigar, processar e punir os eventuais responsáveis pela grave violação a direitos humanos decorrente dos homicídios da vereadora Marielle Francisco da Silva e seu motorista, Anderson Pedro Matias Gomes. Ao revés, constata-se notório empenho da equipe de policiais civis da Delegacia de Homicídios e do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado - GAECO do Ministério Público do Estado do Estado do Rio De Janeiro, o que desautoriza o atendimento ao pedido de deslocamento do caso para a esfera federal.
12. Ademais, considerando o vasto acervo já formado, com centenas de diligências cumpridas e outras tantas em andamento, o pretendido deslocamento das investigações para a Polícia Federal, ao que tudo indica, acarretaria efeito contrário ao que se defende no incidente suscitado, isto é, traria mais atraso às investigações, militando em desfavor do objetivo perquirido.
13. O auxílio que outras instituições federais ou, quiçá, de outros Estados podem dar à persecução penal, com expressa autorização legal (art. 3.º, inciso VIII, da Lei n.º 12.850/2013), não deve ser desprezado, mormente em razão da complexidade da investigação em tela. Revela-se, pois, bem-vindo o registro lançado pelo Parquet Estadual de que, "nesta parte da investigação, o Ministério da Justiça atua diretamente e prestando apoio ao Ministério Público do Rio do Janeiro, onde diversos atos de investigação vêm sendo praticados em conjunto com o GAECO MPRJ".
14. Pedido de deslocamento de competência julgado improcedente.
(IDC nº 24/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, 3º Seção, julgado em 27.05.2020, DJe 01.07.2020).