O dia: 28 de novembro de 1995. A hora: aproximadamente vinte, talvez quinze para a uma da tarde. O local: a recepção do Hotel Novo Mundo, aqui ao lado, no Flamengo.
Acabara de almoçar com minha secretária e alguns amigos, descêramos a escada em curva que leva do restaurante ao hall da recepção. Pelo menos uma ou duas vezes por semana cumpro esse itinerário e, pelo que me lembre, nada de especial me acontece nessa hora e nesse lugar. É, em todos os sentidos, uma passagem.
Não cheguei a ouvir o meu nome. Foi a secretária que me avisou: um dos porteiros, de cabelos brancos, óculos de aros grossos, queria falar comigo. E sabia o meu nome — eu que nunca fora hóspede do hotel, apenas um frequentador mais ou menos regular do restaurante que é aberto a todos.
Aproximei-me do balcão, duvidando que realmente me tivessem chamado. Ainda mais pelo nome: não haveria uma hipótese passável para que soubessem meu nome.
— Sim ...
O porteiro tirou os óculos, abriu uma gaveta embaixo do balcão e de lá retirou o embrulho, que parecia um envelope médio, gordo, amarrado por barbante ordinário.
— Um hóspede esteve aqui no último fim de semana, perguntou se nós o conhecíamos, pediu que lhe entregássemos este envelope ...
— Sim ... sim ...
Eu não sabia se examinava o envelope ou a cara do porteiro. Nada fizera para que ele soubesse meu nome, para que pudesse dizer a alguém que me conhecia. O fato de duas ou três vezes por semana eu almoçar no restaurante do hotel não lhe daria esse direito. [...]
Passou-me o envelope, que era, à primeira vista e ao primeiro contato, aquilo que eu desconfiava: os originais de um livro, contos, romance ou poesias, talvez história ou ensaio.
— Está certo ... não terei de agradecer... a menos que o nome e o endereço do interessado estejam...
Foi então que olhei bem o embrulho. A princípio apenas suspeitei. E ficaria na suspeita se não houvesse certeza. Uma das faces estava subscritada, meu nome em letras grandes e a informação logo embaixo, sublinhada pelo traço inconfundível: “Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão”.
Era a letra do meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, só ele escreveria meu nome daquela maneira, acrescentando a função que também fora a sua. Sobretudo, só ele destacaria o fato de alguém ter se prestado a me trazer aquele embrulho. Ele detestava o correio normal, mas se alguém o avisava que ia a algum lugar, logo encontrava um motivo para mandar alguma coisa a alguém por intermédio do portador. [...]
Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas manias e cheiros.
Apenas uma coisa não fazia sentido. Estávamos — como já disse — em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985.
O Texto apresenta duas partes distintas, sendo a primeira a apresentação do narrador no contexto espaço-temporal da trama e a segunda, as considerações e desconfianças em relação ao embrulho.
O trecho que marca a mudança é:
- A “Não cheguei a ouvir o meu nome” (l. 12)
- B “Aproximei-me do balcão, duvidando que realmente me tivessem chamado.” (l. 18-19)
- C “— Um hóspede esteve aqui no último fim de semana, perguntou se nós o conhecíamos, pediu que lhe entregássemos este envelope” (l. 27-29)
- D “Foi então que olhei bem o embrulho.” (l. 43)
- E “Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava” (l. 60-61)