Questão 4 Comentada - Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) - Sargento da Aeronáutica - Planejar (2017)

                                             Quem casa quer casa


      Num tempo em que se casava depois de namorar e noivar, viajei com meu marido para a minha primeira casa, no mesmo dia do meu casamento. Partia na verdade para um reino onde, tendo modos à mesa e usando meia fina, seria uma mulher distinta como Dona Alice e seu marido saindo para a missa das dez. Pois sim, meu enxoval (...) foi despachado com zelo pela via férrea para uma cidade longe, tão longe que não pude eu mesma escolher casa e coisas. Como você quer nossos móveis?, havia perguntado meu noivo. Ah, eu disse, você pode escolher, mas gosto mesmo é daqueles escuros, pretos. Pensava na maravilhosa cristaleira de Dona Cecília, móveis de pernas torneadas e brilhantes, cama de cabeceira alta. Para a cozinha achei melhor nem sugerir, apostando na surpresa. Você pode cuidar de tudo, respondi a meu noivo atrapalhado com as providências, os poucos dias de folga na empresa, sozinho (...). Foi abrir a porta de nossa casa com alpendre e levei o primeiro susto de muitos de minha vida de casada. A mobília - palavra que sempre detestei - era daquele amarelo bonito de peroba. Tem pouco uso, disse meu marido, comprei de um colega que se mudou daqui. Gostei da cristaleira, seus espelhos multiplicando o ‘jogo de porcelana’ - que invenção! A cama era feia, egressa de um outro desenho, sem nada a ver com a sala. E a cozinha? O mesmo fogão a lenha que desde menina me encarvoara. O fogão a gás vem em duas semanas, explicou meu marido com mortificada delicadeza, adivinhando o borbotão de lágrimas. Mas o banheiro, este sim amei à primeira vista, azulejos, louça branca e um boxe com cortina amarela desenhada em peixes e algas. Recompensou-me. Faz quarenta anos desde minha apresentação a este meu primeiro banheiro com cortina, a um piso que se limpava com sapóleo, palavra que incorporei incontinente ao meu novo status. Vinha de uma casa com panelas de ferro que só brilhavam a poder de areia. (...) Quando me viu a pique de chorar, meu marido me disse naquele dia: quando puder, vou comprar móveis pretos e torneados pra você. Compreendi, com grande sorte para mim, que era melhor escutar aquela promessa ardente ao ouvido, que ter móveis bonitos e marido desatento. Do viçoso jardim arranquei quase tudo para ‘plantar do meu jeito’, tentativa de construir um lar, esperança que até hoje guardo e pela qual me empenho como se tivesse acabado de me casar.

                                                                    Adélia Prado https://cronicasurbanas/wordpress/tag/adelia-prado


VOCABULÁRIO

alpendre: varanda coberta

borbotão: caudal; jorro; jato forte, em grande quantidade

egressa: afastada; retirada, que não pertence a um grupo encarvoara: sujara de carvão

incontinente: que ou quem não se contém, sem moderação

viçoso: que cresce e se desenvolve com vigor



“Do viçoso jardim arranquei quase tudo para ‘plantar do meu jeito’, tentativa de construir um lar, esperança que até hoje guardo e pela qual me empenho como se tivesse acabado de me casar.” Do sentido da frase final do texto, depreende-se, de forma incorreta, que

  • A o cuidado com o jardim representa o mesmo esforço e empenho necessários à edificação do lar, que se constrói com a constante renovação dos laços matrimoniais.
  • B a esperança de que fala a esposa não se refere à certeza de um lar ainda por realizar, mas à de que, em favor de sua construção e manutenção, o melhor está sempre por vir.
  • C a reconstrução do jardim é a forma de a esposa iniciar seu processo de identificação com o espaço que passaria a caracterizar sua vida e com a nova condição de si mesma.
  • D a esposa faz do jardim sua válvula de escape como forma de compensar o controle de suas emoções e a desilusão por um sonho não realizado há décadas: o de construir um lar.