Resumo de Direitos Humanos - Estatuto da igualdade racial

Sistema Nacional de Promoção de Igualdade Racial (SINAPIR) | Sistema Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) | Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

Com a evolução da biologia, restou comprovada a ausência de diferenciação de raça entre os seres humanos, na medida em que o código genético em si é o mesmo para todos nós.

Sem embargo, não se pode negar a existência de diferenciação no que toca ao fator político-social e cultural, o que torna um indivíduo autoidentificado com determinado grupo, de determinada região, com determinados costumes.

O estudo acerca da igualdade racial versa, essencialmente, sobre a aplicação do princípio da igualdade. Todos são iguais perante a lei, conforme prevê a Constituição Federal (CF/1988), no art. 5º. Entretanto, a realidade mostra que não basta a previsão formal para assegurar de fato a igualdade entre todos.

Nesse sentido, para assegurar a eliminação das formas de discriminação racial, é necessária a instauração de políticas públicas e ações afirmativas, em prol das minorias, que, segundo Vitorelli (2012, p. 23), “(...) não é algo que se define por números, mas pela participação efetiva na sociedade e nos órgãos de poder”. Tais políticas e ações visam a que, independente de raça, cor, credo e sexo, possam ser supridas as lacunas que impossibilitam essa realidade da igualdade material de forma indistinta a todos.

A preocupação em proteger a igualdade racial tornou-se prioritária na ordem mundial, principalmente com a elaboração da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil.

Em âmbito nacional, após 10 anos de tramitação, foi aprovada, em 2010, a Lei nº 12.288, conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, que, seguindo os parâmetros da Convenção, tem como objetivo a eliminação da discriminação racial, especificamente em relação à população negra.

Conforme o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, disponível em website, a soma da população negra e parda representa a maior parte da população brasileira (aproximadamente 50,1%). O restante da porcentagem corresponde às populações branca, amarela e indígena (respectivamente, 48%, 1% e 0,9%, aproximadamente). Por isso, em uma sociedade majoritariamente negra, é essencial que sejam efetivadas medidas discriminatórias positivas, a fim de que, com o passar do tempo, todo o histórico de sofrimento e preconceito possa ser sanado por meio do acesso igualitário de oportunidades entre todos.


Estatuto da Igualdade Racial

Além da Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada por meio da Resolução nº 2.106-A da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) de 1965 e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 65.810 de 08.12.1969, o Estatuto da Igualdade Racial pousa raízes na CF/1988, destacadamente em seus arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana), 3º, IV (objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação), além do 5º (princípio da igualdade).

Assim, visando imprimir concretude às obrigações do Estado brasileiro assumidas por força da Convenção da ONU, bem como em obediência aos comandos constitucionais, foi editada a Lei nº 12.888/2010, o chamado Estatuto da Igualdade Racial.

Veja-se o seu art. 1º:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Portanto, a proteção em âmbito doméstico concretiza-se, especialmente, por meio da Lei nº 12.888/2010, voltada, notadamente, à proteção da população negra, cuja discriminação é historicamente acentuada no Brasil, em que pese a miscigenação que caracteriza a população brasileira como um todo.

A proteção à igualdade racial e o combate à sua discriminação têm justamente como mote demonstrar que qualquer doutrina de superioridade racial e de discriminação é cientificamente falsa e injusta, portanto, deve ser repelida.

Vale mencionar o princípio da dignidade da pessoa humana, elencado como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, do qual a dignidade racial decorre, além de outros, de forma praticamente expressa.

Não obstante, a base do combate à discriminação está no art. 5º, que trata do princípio da igualdade, não em seu viés de isonomia formal, que dispõe que todos devem ser tratados de forma igual, não devendo a lei fazer distinções, mas, sim, em seu viés de isonomia material, igualdade material, na qual pessoas que se encontram em situações fáticas diferentes devam ser tratadas de forma diferente, justamente com a finalidade de que sejam colocadas em plano de igualdade materialmente.

Essa é a velha máxima de Ruy Barbosa, em sua obra Oração aos Moços, de aquinhoar de forma diferente aqueles que se encontram em situações fáticas desiguais, justamente com a finalidade de colocá-los em igualdade.


Estrutura do Estatuto

Parte I – Disposições preliminares (arts. 1º a 5º).

Parte II – Direitos fundamentais (arts. 6º a 46).

Parte III – Do sistema nacional de promoção da igualdade racial (arts. 47 a 57).

Parte IV – Disposições finais (arts. 58 a 65).

Importante mencionar que o Estatuto adota como diretriz político-jurídica a inclusão de vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional, nos termos de seu art. 3º.


Conceito de discriminação racial

Existe um conceito ou definição internacional de discriminação racial? Este conceito é idêntico ao conceito nacional?

Existe um conceito internacional cunhado na Convenção da ONU sobre discriminação racial, especificamente em seu art. 1º.

Artigo I

1. Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

Portanto:

a) Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica.

b) Que tenha por finalidade ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, em igualdade de condição, de direitos humanos e liberdades fundamentais.

c) Nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

Ainda, existe um conceito nacional, disposto no parágrafo único do art. 1º, I, da Lei nº 12.888/2010, que difere apenas em sua forma do conceito internacional, mas, substancialmente compatíveis, acrescendo o campo privado, conforme parte final. Tal ampliação é possível, na medida em que ampliativa da proteção conferida pela Convenção.

Art. 1º (...)

Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

I – discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; (...)

Portanto:

a) Toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica (idêntico à Convenção).

b) Que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais (substancialmente idêntico à Convenção).

c) Nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada (acresceu o campo privado).

Um bom exemplo de proteção especial na área privada diz respeito à necessidade de tratamento da população negra vinculada a planos privados de saúde sem discriminação, conforme expressamente consignado no art. 6º, § 2º, do Estatuto.

Art. 6º O direito à saúde da população negra será garantido pelo poder público mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros agravos.

(...)

§ 2º O poder público garantirá que o segmento da população negra vinculado aos seguros privados de saúde seja tratado sem discriminação.

Portanto, o Estatuto compartilha do mesmo conceito de discriminação racial estabelecido na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.

De acordo com Edilson Vitorelli (2012, p. 64), o conceito do Estatuto foi (mal) copiado da Convenção, sem que se percebesse que a aplicabilidade desta é mais ampla. É certo, todavia, que o objetivo do Estatuto, ainda que equivocado, foi o de permanecer restrito à população negra, sendo indevida outra interpretação, ainda que, conforme já afirmado, fosse melhor.

O autor faz uma crítica ao Estatuto por elencar somente a proteção à igualdade racial a população negra, sendo que, como dispõe a Convenção, poderia ter abrangido, na mesma oportunidade da elaboração da lei, outras discriminações étnicas, como por exemplo a que tange aos povos indígenas.


Outros conceitos do Estatuto

Para além do conceito de discriminação racial, o Estatuto amplia ao conceituar desigualdade racial, de gênero e raça, população negra, políticas públicas e, por fim, ações afirmativas, conceitos de ampla incidência em provas.

Art. 1º (...)

II – desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;

III – desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;

IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;

V – políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;

VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades. (Grifos nossos.)

Especial atenção aos conceitos de desigualdade racial (inciso II) e discriminação racial ou étnico-racial (inciso I), cuja semelhança é bastante explorada em provas.

Sobre o conceito, vale lembrar que a discriminação corresponde aos verbos, às condutas, quer sejam: distinguir, excluir, restringir ou preferenciar.

– Desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica.

Desigualdade refere-se a uma situação de diferença injustificada, diferentemente da discriminação, que corresponde aos verbos, às condutas e aos atos. Conforme leciona Edilson Vitorelli, “a desigualdade é a situação verificada, que pode ser resultado da discriminação” (2012, p. 64).

Ainda, o professor Adilson Moreira, doutor em Harvard, tem uma brilhante obra sobre discriminação e racismo, com uma abordagem inusitada, incluindo a expressão “projeto racial” em substituição a simplesmente “racismo”.

O professor-doutor Adilson Moreira e outros dessa área que buscam o reconhecimento e a promoção da dignidade racial substituem o termo “racismo” pelo termo “projeto racial”, vez que enxergam o racismo e a discriminação como um projeto de manutenção das estruturas postas de poder, da hegemonia branca, que se espraiam para diversos seguimentos e áreas envolvendo inúmeros aspectos que se alternam ao longo da evolução, ao longo do momento histórico vivido e das situações, dos cenários vividos em cada país.

O professor-doutor cita como exemplo o projeto racial vivenciado hoje nos Estados Unidos, que é diferente do projeto racial vivenciado naquele local décadas atrás. Sa mesma forma no Brasil, o racismo – a discriminação racial – atual é diferente da que tivemos há tempos remotos.

Assim, a obra trabalha com a ideia de evolução do conceito de racismo ao longo do tempo, denominando-a de projeto racial, expressão a designar a realidade experimentada em determinado país num certo lapso temporal em relação ao quadro de discriminação.

– Desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais.

Esse inciso visa especificar a desigualdade referente à mulher negra na sociedade. Além da discriminação pela cor, a mulher negra sofre duplo preconceito pelo gênero. Para demonstrar com clareza, a pesquisa desenvolvida pela parceria entre Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ONU Mulheres (Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres) e Secretaria de Políticas para as Mulheres do Ministério da Justiça e Cidadania (SPM) coletou dados entre 1995 a 2015, visando compor um retrato atual da situação de brasileiros e brasileiras sob a perspectiva das desigualdades de gênero e raça.

A média de tempo de estudo da população com 16 anos ou mais é 7,8 anos para as mulheres negras, que só ficam acima dos homens negros, com 6,8 anos. A taxa de desemprego para as mulheres negras é a mais alta, com 12,5%. Além disso, a renda média da mulher negra é a mais baixa, com R$ 544,40, em comparação com a do homem negro, que é de R$ 833,50, a da mulher branca, de R$ 957,00 e a do homem branco, de R$ 1.491,00. A partir da coleta desses dados, percebe-se a necessidade de abordar a desigualdade de gênero e raça no Estatuto.

– População negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE, ou que adotam autodefinição análoga.

Segundo o inciso IV do parágrafo único do art. 1º, é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE, ou que adotam autodefinição análoga.

Há séculos o povo negro sofre discriminações generalizadas, tendo havido também no Brasil época em que eram simplesmente coisificados, considerados bens materiais de homens brancos, escravos cuja natureza jurídica não era de pessoa, mas de bem móvel.

Ainda após a abolição da escravatura, o que ocorreu no Brasil com a Lei Áurea, Lei Imperial nº 3.353 de 13.05.1888, assinada pela Princesa Isabel, de autoria de Rodrigo Augusto da Silva, a população negra permaneceu por longas décadas simplesmente alijada dos direitos mais básicos, a exemplo de educação, moradia digna, saúde etc.

Até os dias atuais são presenciados casos de discriminação racial sofridos pela população negra no Brasil, não sendo raros casos de injúria racial, racismo, discriminação laboral, diferenciações das mais diversas formas, fruto de um ranço histórico que demandará um bom tempo de ações afirmativas e educacionais a fim de ser minimamente superado.

O legislador não estabeleceu critérios para o estabelecimento da cor declarada, apenas se limitou a dispor que será preto ou pardo aquele que se autodeclarar.

Para Edilson Vitorelli, a autodeclaração seria prejudicial à proteção da igualdade racial, porque poderiam se declarar pretos ou pardos “quem disser que é” (2012, p. 69), não importando a condição de fato inerente àquela pessoa. Ainda para o mesmo autor (2012, p. 70), outro problema é o igual tratamento entre pretos e pardos. Sem saber como estabelecer uma distinção entre essas duas situações, o legislador as tratou igualmente, ignorando todos os estudos que dizem que o preconceito é maior quanto mais escuro for o tom da pele.

Como a ideia principal do Estatuto é sobre a criação de políticas públicas e ações afirmativas para o atendimento de grupos “minoritários” que sofrem discriminação, é necessário que sejam identificados tais grupos como prejudicados, pois de nada valeria uma extensão indiscriminada de desigualdades positivas a toda população.

– Políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais.

– Ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

As políticas públicas são ações de iniciativa do Estado, enquanto as ações afirmativas, da mesma maneira que as políticas públicas, seriam as mesmas ações, mas podendo ser adotadas pelo Estado e por particulares. As duas visam ao combate às desigualdades raciais, representando meios aptos a estabelecer políticas de discriminações positivas.

Para Tavares (2017, p. 471), as denominadas “ações afirmativas” compõem um grupo de institutos cujo objetivo precípuo é, grosso modo, compensar, por meio de políticas públicas ou privadas, os séculos de discriminação a determinadas raças ou segmentos. Trata-se de tema que tem ocupado posição central na pauta das ações políticas de diversos governos, demandando engenhosas soluções jurídico-políticas.

A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão nacional, atua junto ao Estado e aos particulares para a promoção dessas medidas – políticas públicas e ações afirmativas, principalmente na defesa dos direitos fundamentais à população negra.

É responsabilidade da SEPPIR a construção de parcerias com os demais entes federados e sociedade civil para a elaboração, execução e acompanhamento de ações afirmativas destinadas ao enfrentamento das desigualdades étnicas referentes a educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à justiça, à juventude, às mulheres, entre outras. No que tange ao tema das discriminações positivas, as cotas raciais são um dos exemplos de ações promovidas visando a inclusão da população negra nos meios educacionais. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamenta (ADPF) nº 186, ação que versava sobre a política de cotas étnico-raciais implantadas pela Universidade de Brasília (UnB), foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 26.04.2012.