A cor do invisível
Certo autor famoso dividiu um livro seu em duas partes: na primeira, contos realistas, na segunda, contos fantásticos. Resultado: tem-se a frustrada impressão de que ficou cada uma das partes amputada da outra, quando na realidade os dois mundos convivem. Por que chamar de invisível ou fantástico a esse mundo de que faz parte a caneta esferográfica com que vou abrindo caminho pelo papel como um esquiador sobre o gelo? Este é o mundo que se vê... e no entanto pertence ao mesmo mundo espiritual que está movendo a minha mão.
Um dia, num poema, ante esse frêmito que às vezes agita quase imperceptivelmente a relva do chão, eu anotei: são os cavalos do vento que estão pastando.
Invisíveis? Disse Ambrosio Bierce que, da mesma forma que há infrassons e ultrassons inaudíveis ao ouvido humano, existem cores no espectro solar que a nossa vista é incapaz de distinguir. Ele disse isso num conto seu, para explicar os estragos e as estrepolias de um monstro que "ninguém não viu".
Mas deixemos de horrores e de monstros - coisas de velhas e crianças - e acreditemos na cor dos seres por enquanto invisíveis para nós, como é chamado invisível este oceano de ar dentro do qual vivemos. Há muitas cores que não vêm nos dicionários. Há, por exemplo, a indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: ? a cor do tempo...
(Adaptado de Mário Quintana, Na volta da esquina)
Está plenamente adequada a correlação entre tempos e modos verbais na frase:
- A Se separássemos drasticamente o visível do invisível, o efeito de beleza das obras de arte pode reduzir- se, ou mesmo perder-se.
- B Diante do frêmito que notou na relva, o autor compusera um verso que havia transcrito nesse texto.
- C Ambrosio Bierce lembraria que houvesse sons inaudíveis, da mesma forma que nem todas as cores se percebam no espectro solar.
- D Se o próprio ar que respiramos é invisível, argumenta Mário Quintana, por que não viéssemos a crer que pudesse haver cor na passagem do tempo?
- E A caneta esferográfica, de onde saírem as mágicas imagens de um escritor, é a mesma que repousará sobre a cômoda, depois de o haver servido.